Obras do autor.

LAVOURA ARCAICA (1975)
 

 Sobre a obra:
O romance Lavoura Arcaica revisita, em pequena medida, a história de Amon e Tamar, os incestuosos filhos de Davi, segundo Rei de Israel. Faminto de um tipo de amor que não viceja nos leitos meretriciais que assiduamente freqüenta, André, adolescente instável e presa de uma psique tumultuada, acaba encontrando em Ana, sua irmã mais nova, o combustível do seu desejo sexual e de suas afeições.
Incapaz de partilhar da vida rural da família, sentindo-se distante e alheio ao pequeno mundo capitaneado por Iohana, seu pai, André não suporta os sermões paternos, o abecedário judaíco-cristão repetido à exaustão junto à mesa, a pacata e macilenta convivência com os familiares, além de demonstrar uma clara incapacidade de crer/obedecer guiado apenas pela fé cega de que parecem partilhar Iohana e Pedro, irmão mais velho de André.
Se a aproximação física entre André e Ana mostra-se irresistível em seus momentos embrionários, concretizando-se, enfim, torpe e intensamente, nas palhas que cobrem o chão de uma casa abandonada, o exaurir dos sentidos traz, contudo, para Ana, a consciência moral de seu ato, levando-a à oração e à fé. É o momento de confissão da culpa, de cinzas sob a fronte.
André tenta demovê-la de sua contrição e, não o conseguindo, parte em direção a um quarto sujo de pensão, à introspeção, à bebida e ao delírio. É mergulhado nesse universo de pútrido delírio que André se entrevista com Pedro, o irmão mais velho, bovídeo sucessor do Pai. André retorna para casa, tal qual o filho pródigo da parábola bíblica, mas não se arrepende, apenas contemporiza com o Pai, seus sermões e sua moral. Uma festa é feita em homenagem ao regresso do filho ausente e Ana dança lascivamente, acedendo e cedendo-se tacitamente (na linguagem do código particular de irmãos-amantes) à paixão do irmão, ocasião em que Iohana fica sabendo por Pedro sobre a relação incestuosa entre aqueles. O alfange brilha na mão do Pai. O sangue de Ana é derramado, tal qual um sacrifício hebreu antigo. O castelo de valores e crenças de Iohana, porém, sucumbe de modo irrecuperável, descendo ao limbo como o corpo sem vida de Ana. A tradição está em xeque; provavelmente, no fim.

UM COPO DE CÓLERA (1978) 




 Sobre a obra:Escrita em apenas 15 dias, no ano de 1978, Um copo de cólera é a novela essencial da literatura moderna e contemporânea. Nas palavras do escritor: "Disse que escrevi a narrativa em quinze dias, mas esses quinze dias foram só o tempo de descarga. É que a novela deveria estar em estado de latência na cabeça, e sabe-se lá quanto tempo levou se carregando, ou se nutrindo - de coisas amenas, está claro - e se organizando em certos níveis, até que aflorasse à consciência".
Mais uma vez, a exemplo de Lavoura Arcaica, a carga ideológica opositiva entre amantes - neste caso - marca e dá consistência à obra de Raduan Nassar. Aqui, não mais um filho adolescente descobrindo a delinqüência corporal e moral da existência, e sim um adulto, calcado, machucado pelos reversos do tempo. Seria talvez esse adulto o adolescente que fora André em Lavoura Arcaica? Muito se indaga a esse respeito, mas evidências ainda estão por vir à tona para corroborar a questão. Mas semelhanças, de fato, existem.
Na contramão do discurso ideológico do adulto está sua amante, afeita às causas sociais, e aos discursos cristalizados da modernidade em geral, lutando para imprimir seu verbo latente, e vice-e-versa. O estopim do "esporro" entre os dois se dá num dia aparentemente calmo, após uma convulsiva noite de sexo, ao se encontrarem na mesa do café, num silêncio constrangedor, pela manhã. O que tira a ordem do dia é justamente um bando de formigas que estraga a cerca viva que ele havia feito no quintal. O impulso voraz com que se envolve com o acontecido provoca na amante indignação suficiente para indagar a respeito do desvario. Daí se cria o terreno propício para o verbo escandalizado vir à tona.
Ele se enlouquece com a organização ordeira das formigas, transportando todo esse furor à amante que, não menos desvairada, enfrenta a discussão armada com alfinetes politizados: "Só um idiota recusaria a precariedade sob controle, sem esquecer que no rolo da vida não interessam os motivos de cada um - essa questãozinha que vive te fundindo a cuca - o que conta mesmo é mandar a bola pra frente, se empurra também a história co'a mão amiga dos assassinos; aliás teus altíssimos níveis de aspiração, tuas veleidades tolas de perfeccionista tinham mesmo de dar nisso: no papo autoritário dum reles iconoclasta - "o velho macaco na casa de louças, falando ainda por cima nesse tom trágico como protótipo duma classe agônica... sai de mim, carcaça"
A cólera a que remete o título da novela corresponde ao fluxo verbal que toma conta das personagens nesse momento de fúria, onde razão e emoção não mais se dissociam, e tornam-se, sobretudo, uma massa amorfa que tem como alvo a destruição do outro, ou ainda, a autodestruição. Como resultado do embate, restam, nas almas desgastadas, um barulhento silêncio e um abarrotado vazio.

Mais um pouco sobre a obra

Um Copo de Cólera flagra um dia na vida de um casal. Ele é um homem de aproximadamente 40 anos, que constrói para si, em sua chácara nos arredores de São Paulo, um mundo à margem da sociedade. Ela é uma jornalista atraente e feminina, politicamente atuante.
No final da tarde, quando ele chega na chácara, ela já está ansiosa, à sua espera. Passam pelo terraço, pela cozinha e sem muita conversa, entram no quarto e começam a se despir. Na manhã seguinte, depois de uma intensa noite de amor e de um banho demorado, enquanto tomam o café da manhã, ele percebe um rombo feito por saúvas em sua cerca viva. Esse acontecimento banal deflagra nele um súbito ataque de cólera e a aparente harmonia entre os dois se rompe. Eles se atracam num rude bate-boca, desencadeando um turbilhão de emoções e paixões em um clima tenso e contundente.

Sinopse e comentário

Romance existencial. Mulher e homem encontram-se no sítio deste, em silêncio. Amam-se intensa e apaixonadamente durante todo o dia, até que na manhã seguinte tem início o conflito. Ela, jornalista, critica o seu isolamento e o niilismo, que entende como reacionários. Ele, cansado do mundo, ataca o que vê como demagogia nas atitudes pretensamente democráticas dela. A discussão se estende até arranhar a agressão física e a separação.
Como o anônimo casal que protagoniza o filme, é a intensidade da relação amorosa e a individualidade que brigam em Um Copo de Cólera. A discussão que atravessa o filme é tão forte e excessiva quanto a cena de sexo que o inicia. A linguagem adotada, no entanto, por mais visualmente cinematográfica e bem fotografada, perde-se quando se reduz à reprodução do discurso literário, soando pouco convincente e mesmo tornando-se cansativa. O texto, transposição fiel do romance no qual se baseou, acaba sendo o pior e o melhor (na bela cena final) do filme.
"... e estava assim na janela, quando ela veio por trás e se enroscou de novo em mim, passando desenvolta a corda dos braços pelo meu pescoço, mas eu com jeito, usando de leve os cotovelos, amassando um pouco seus firmes seios, acabei dividindo com ela a prisão a que estava sujeito, e, lado a lado, entrelaçados, os dois passamos, aos poucos, a trançar os passos, e foi assim que fomos diretamente pro chuveiro."
"O corpo antes da roupa", afirma o personagem de Um copo de cólera ao narrar o que acontece numa manhã qualquer, depois de uma noite de amor, quando a aparente harmonia entre ele e sua parceira se rompe de repente. Tensa, contundente, a linguagem de Um copo de cólera alcança tal intensidade e vibração que faz desta narrativa uma obra singular da literatura brasileira, um clássico dos nossos tempos.
Na recente história da ficção brasileira, pode-se vislumbrar, com muitas omissões, a seguinte linha evolutiva: fusão da oralidade popular com a tradição erudita do português escrito, em Guimarães Rosa, que produziu, depois de Euclides da Cunha, a mais poderosa experiência de sintaxe do século 20; minimização com o trabalho com a sintaxe, em Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, que objetivaram o despojamento próprio da frase jornalística, com inclinação para a univocidade do discurso. Se essa última experiência representou uma saída satisfatória para o impasse roseano, nem por isso deixou de privar o leitor da literatura conceitual, com densidade filosófica.
Nos anos 70, Raduan Nassar empreendeu um retorno à especulação sintática, escrevendo um díptico tão necessário quanto maravilhoso: Lavoura Arcaica (1975) e Um com de cólera (1978). <...> Em primeiro lugar, Um copo de cólera é uma afirmação peremptória, mas não arriscada: trata-se de um dos mais belos e bem acabados exemplos de novela na literatura brasileira, entendendo-se pelo termo uma narrativa relativamente curta e muito densa em torno de um único episódio, o qual deve conservar a instantaneidade fugaz do fluxo contínuo da vida. É sobretudo a partir dessa noção que Um copo de cólera poderá ser lido como um clássico, um admirável modelo de como sugerir uma longa história por meio de um pequeno fragmento do cotidiano.

MENINA A CAMINHO (1994)






 Sobre a obra:Ao acompanhar os passos da “Menina a caminho” pelas ruas de uma cidade do interior, o leitor ficará seduzido com ela pela sucessão de situações corriqueiras. Como a menina da narrativa, estará caminhando rumo a um desfecho que recupera dramaticamente o que se encontrava disperso ao longo daquele trajeto.


Primeiro trabalho de Raduan Nassar, escrito no início dos anos 60, só em 1997 “Menina a caminho” saiu em edição comercial, ao lado de textos escritos nos anos 60 e 70.
“Mãozinhas de seda”, que integra a coletânea, foi escrito especialmente para o segundo número dos Cadernos de Literatura Brasileira (IMS), quando Raduan Nassar foi tema da revista. O texto não foi publicado pelos Cadernos a pedido do autor.